terça-feira

As Praias de Agnés

Não sendo um poema, é poesia.

As Praias é um filme contagiante. Sorriso igual àquele com que se sai de uma sessão de As Praias, só depois de ver O Fabuloso Destino de Amélie Poulain. Mas são coisas muito diferentes. O contagiante de Agnés é o tocante de Jean-Luc Nancy (Resistência da Poesia). É desejo de termos sido nós a fazer aquilo, de o ter mais próximo de nós, é uma injecção de querer fazer também, de vontade de criar. Para ser poesia, diz Nancy, há também que ser elevado, mas essa é fácil de resolver com um argumento "martelado": As Praias é uma autobiografia, ou um auto-documentário, e que há de mais elevado do que tocar a condição humana na primeira pessoa? Agnés conta a sua vida a partir das praias da sua memória, num registo despojado e não intimista, porque não se põe a questão fronteiriça entre Agnés pública e privada: existe apenas uma, a d'As Praias de Agnés.
Sendo um filme de 2008, e vindo com certeza a afirmar-se como um clássico, é já um clássico, pelo sentido de beleza, de harmonia, que o percorre. É belo no uso da cor, no uso da imagem, na justaposição de imagens, no uso de uma narração simples da ordem da anedota (e repare-se como "belo" nem sequer fica campy). A sua harmonia vagueia pela mão da memória e de fotografias espalhadas, segue o fio condutor da cronologia, sem que esta lhe sirva de estrutura geométrica.
Sem ser um filme leviano, não impõe o seu peso em reflexão, não impõe nada, não faz exigências. Simplesmente é.
Este sentido poético (que não posso explicar melhor nem pior) que se cruza com o contagiante diz-me que As Praias é uma obra de arte. (Este tipo de afirmações já não se faz, é certo, mas um dia não são dias!)

O que ele é não diz da poesia o que ela é, mas encontram-se no que cada um por si é.

quinta-feira

Um Amor de Perdição

Na última quinta-feira comecei por perguntar o que restava do romance e acabei por não lhe dar uma resposta. Respondo hoje, depois de ter visto Um Amor de Perdição de Manuel Barroso. E é já esta a segunda vez que o cinema aparece voluntariamente em meu auxílio. Numa era altamente interdisciplinar, estes cruzamentos nada têm de estranho, literatura no cinema nunca foi novidade. Um Amor de Perdição trata-se - nas palavras do próprio cineasta – de uma adaptação livre. Os meus problemas começam logo aqui, pois não me parece muito livre. A novela de Camilo Castelo Branco é adaptada à contemporaneidade, o que a transforma drasticamente, mas não mais do que em termos plásticos. O drama foi competentemente transplantado para o filme, que se mantém fiel ao espírito agonístico (submissão-insubmissão), aos personagens apaixonados, ao enredo trágico do livro.
Contudo, se estas premissas não se mantivessem intactas, o que restaria de O Amor de Perdição em Um Amor de Perdição?
Parece-me que estou a levantar mais uma questão para a qual não vou encontrar resposta, no entanto, ela lança mais umas achas ao romance.
O filme é tão fiel à linearidade narrativa como a novela; ambos adoptam o modelo aristotélico causa-efeito, sequência-consequência, acção-reacção, sob os princípios da unidade, da economia e da verosimilhança. Modelo clássico que as épocas não rejeitam e que as tendências e as inovações não destroem; é uma espécie de vestido preto da literatura.
E como aos vestidos pretos nas galas se tenta evadir, por não causar sensação de novidade, alternativas ao romance tradicional se vão procurando. Frequentemente a posteridade fixa essas formas romanescas de fuga à época em que se materializaram e por vezes elas são reabilitadas por novos autores, deixando intacto o arquétipo. Sempre intacto o arquétipo.

A Náusea e o caminho para o nouveau roman

Já me tinha ocorrido que do romance não se pudesse fazer um retrato exacto. Ocorre-me agora a hipótese de tal coisa nem sequer existir. O que resta deste termo quando se tem nas mãos um romance tão diferente do anterior, como é o caso de A Náusea (Jean Paul Sartre, 1938)?

“Quando se está sozinho deixa de se saber o que seja narrar: a verosimilhança desaparece ao mesmo tempo que os amigos.” Roquentin é um protagonista solitário com um diário. Está num espaço privilegiado que lhe permite evadir-se ao confronto com os outros - que é onde muitas vezes se situa a verdadeira origem da tensão do romance "tradicional". Aqui o confronto é com o exterior material, é com as coisas estáticas que não emitem respostas porque não têm nada a dizer, porque simplesmente não dizem nada. A Náusea reflecte esse silêncio das coisas, obrigando Roquentin a formular o postulado existencialista de que tudo o gira em torno dessas coisas são apenas vozes que ele próprio lhes acrescenta artificialmente - como se fossem dobragens dessincronizadas. Roquentin olha para si, independente do exterior, por ser o único corpo vivo acessível, a única matéria orgânica que pode tentar compreender. O outro é sempre um estranho, a quem se tenta fazer chegar uma extensão dessa possibilidade, que inevitavelmente falha.
“Não tenho o costume de contar a mim próprio o que me vai sucedendo” agudiza a percepção de uma dualidade interior, manifesta na auto-consciência do indivíduo que se desdobra em sujeito de si enquanto objecto e simultaneamente em objecto de si enquanto sujeito. Constrói-se, ou percepciona-se, uma duplicidade que dispensa a presença de outros para a existência do indivíduo. E como sujeito e objecto se encontram na mesma plataforma existencial, a sua comunicação não necessita de um veículo material para transportar as significações – esta particularidade transfigura por completo o esquema comunicacional, ou torna-o dispensável. Neste indivíduo as ideias e os conceitos não necessitam de ser categorizados por palavras, não precisam de encontrar correspondências verbalizadas, podem permanecer em estado, tanto quanto possível, puro, no seu estado ideal. Assim, correm o risco de, como afirma Roquentin, de se manterem em estados enevoados, de pouca clareza.
“Não tenho o costume de contar a mim próprio o que me vai sucedendo; por isso não recordo bem a sucessão dos acontecimentos, não distingo o que é importante.”
Que papel desempenham os outros no estabelecimento da escala de importância de acontecimentos pessoais? Apenas na medida em que se pretenda que essa escala seja regida por valores universais, se procure os valores absolutos em que um acontecimento possa corresponder univocamente a determinado ponto da escala. A novidade para A Náusea já não é não existir uma escala universal de valores, mas sim não existirem valores.

“Decididamente o sentimento de aventura não vem dos acontecimentos.” Ele decorre da noção de irreversibilidade do tempo e do encadeamento dos acontecimentos: o acontecimento que nunca se poderá repetir é potenciado na sua unicidade pelos acontecimentos que se lhe seguem, assim aquando da narração do episódio já se pode acrescentar ao primeiro momento presságios do que serão os seguintes, já se poderá estabelecer relações simbólicas entre eles e transformá-los numa aventura. É um jogo de vaivém temporal que legitima a revalorização dos acontecimentos.
No romance tradicional este mecanismo torna-se evidente, por exemplo, quando determinado personagem, que sempre agira de acordo com um carácter forte, no final do romance se vê em posição de fraqueza, nesse momento todo o passado do personagem é reavaliado e os acontecimentos encerram o prenúncio até então obscuro.

A uma segunda-feira Roquentin escreve: “Não tenho necessidade de fazer frases. Escrevo para aclarar certas circunstâncias. Desconfiar da literatura! É preciso escrever ao correr da pena, sem procurar as palavras.”
Estavam lançadas as bases do nouveau roman, um romance livre da obrigação da lógica interna, cujos elementos não têm de concorrer para um sistema global de significações, nem dele depender?

segunda-feira

Contributo de A Mulher sem Cabeça para a noção de romance


Estava planeado decripticar A Máquina do Amor Sagrado e Profano na quinta-feira, mas atravessou-se-lhe A Mulher sem Cabeça no caminho e tornou-se urgente falar do romance.

"A realidade é um acto de fé de todos nós. Um grande consenso e um acto de fé..." Em entrevista ao Ípsilon de sexta dia 3, a propósito do seu último filme, Lucrecia Martel sintetiza o romance de Iris Murdoch e expõe em poucas palavras a mecânica do género.

A Máquina do Amor Sagrado e Profano acompanha (como se fossem coisas independentes) um psicoterapeuta com duas famílias, a legítima em ambiente tranquilo e a bastarda em decadência. Despoletada por factos que lhe são alheios, Blaise confronta-se com a necessidade de revelar à mulher com quem casou que nos últimos cerca de dez anos manteve uma relação paralela com outra mulher, na qual se gerou um filho.

Uma perturbação que, de entre todos os seus males, tem como o maior a necessidade de ser contado, isto é: não é sagrado. A revelação é a profanação do território sacralizado pelo tácito e a perturbação da ordem não tem como ser expressada pelos rituais; a revelação, a perturbação, obriga o círculo fechado, pré-concebido e institucionalizado a receber estranhos (pessoas, coisas ou acontecimentos). A mulher e o filho de Blaise não podem continuar as suas vidas fingindo que a amante e o outro filho de Blaise foram apenas alguém que lhes bateu à porta por engano. Já Veronica, a mulher sem cabeça, decide passar novamente por cima do corpo (humano ou animal?) que atropelou agora para o esquecer.

Crise é o momento ideal para o romance. Porque se procura voltar a uma inocência auto-reflectiva, porque o profano interroga o sagrado e o desabriga do estatuto de tabu, porque tem sempre que ver com a dessacralização da fé. "Quando se é criança sentem-se as coisas
sem se dizer." Continua Martel na entrevista, pois eu proponho o contrário: quando se é adulto sentem-se as coisas sem se dizer, e quando se têm mesmo de dizer essas coisas, inicia-se um regresso purificador a um estado essencial. Importa pouco ao romance onde leva esse regresso, ou se esse regresso é efectivamente levado a cabo. Importa a fractura que se torna acto não religioso mas espiritual. O personagem que se desdobra, o sujeito que se afasta da máscara e deixa espaço ao narrador para o escrutínio.

"Se a anedota é muito forte, se a construção da narrativa é impositiva, não há renovação da percepção." É neste momento lúcido, de consciência, que o cinema, máquina artística como a literatura, romance, conto ou poema, se transforma em revelação.

quinta-feira

Porque se diz que Borges e Tchékhov são dois paradigmas do conto


Harold Bloom escreveu talvez em Como Ler e Porquê (2000) que Tchékhov (1860-1904) e Borges (1899-1986) são as tendências actuais dos contos. A desactualização a que é susceptível uma asserção desta natureza não reduz o valor destes contos a apontamentos de uma história literária. Têm ambos lugar garantido na categoria dos clássicos;assim, resta compreender o valor que lhe é atribuído enquanto tal, o de paradigma. Adia-se a problemática que diz respeito aos termos paradigma, clássico e cânone, tão caros a Bloom, para outra ocasião.

O filho e o amante de Olga Ivanóvna têm, sob promessa sigilosa do amante, uma conversa que desvenda, em primeiro lugar, que filho e pai se encontram às escondidas da mãe e, em segundo lugar, que o pai considera mãe e filhos uns desgraçados por culpa do amante. Olga entra em cena e o amante confronta-a com as acusações que lhe são dirigidas pelo marido. E o filho não esquecerá o momento em que "deparara pela primeira vez na vida, cara a cara, com a mentira; dantes não sabia que neste mundo, além das pêras doces, dos pastéis e dos relógios caros, existem muito mais coisas que nem nome têm na língua infantil."
(Tchékhov, Insignificâncias da Vida, Contos, vol. I, Relógio D'Água)

"Então Bioy Casares recordou que um dos heresiarcas de Uqbar havia declarado que os espelhos e a cópula eram abomináveis, porque multiplicam o número dos homens. Perguntei-lhe a origem desta memorável sentença e respondeu-me que The Anglo-American Cyclopaedia a registava no seu artigo sobre Uqbar." Uqbar começa por ser referido num único exemplar do volume Tor-Ups da enciclopédia. Num crescente labirinto de referências Uqbar vai ganhando existência ora como uma "região do Iraque ou da Ásia Menor", ora como comunidade imaginária, ora como um planeta desconhecido, até que o narrador se encontra com o livro que fixa a história total de Uqbar.
(Jorge Luis Borges, Tlon, Uqbar, Orbis Tertius, Ficções, 1944)

Este conto é dos que mais explicitamente afirma a opção tomada por Borges: a ficção - não na literatura, mas por oposição à realidade. A ficção de Borges é de mundos paralelos, nada fantásticos, totalmente lógicos. Cada conto de Borges rege-se por um princípio lógico exclusivo que só pode ser entendido no próprio conto, isto é, o mundo real é o dos livros e as pistas que eles deixam levam a mundos ficcionados, em jogos de espelhos cujas imagens se confundem até perder de vista os limites da realidade e da ficção. Tlon, Uqbar, Orbis Tertius é a terceira via, labiríntica como a literatura de Borges, ordenada como a literatura, de Borges e humana, como o âmago da literatura de Borges.

Tchékhov opta pela realidade, ajusta os limites da sua ficção aos limites da realidade que conhece, em contos plásticos. São recortes muito precisos de momentos extraídos de vidas dadas a conhecer na sua totalidade através de uma fórmula radical, concisa e funcional - que nunca teria lugar num conto borgesiano - "como de costume". O conto de Tchékhov concentra-se na singularidade indelével, no particular perturbante no seio do costume. O conto de Tchékhov pode igualmente construir-se sobre a repetição da anomalia como processo de regularização, jogando sempre com os valores de rotina e de ruptura.

Assim, os contos de um são expansão (pelo espaço incartografável da ficção) e os do outro de retracção (provocada pelo tempo condicionado da realidade); Borges escreve propostas de uma ordem paralela e Tchékhov escreve as perturbações da ordem. Cada um à sua maneira paradigmática estabelece ligações entre os eixos singular-universal que presidem à literatura em geral e ao conto em particular. Quanto ao romance, para ser um conto falta-lhe este princípio de unidade. Ele dispersa-se nas múltiplas possibilidades, sem ter de prestar fidelidade a nenhuma.

Porque estava a ler Sereníssima República de Machado de Assis

A Cidade do Sol é um título incontornável no género utópico. Escrito por Tommaso Campanella em 1623 sob a forma de diálogo, em que um Almirante descreve uma cidade que visitou a um Grão-Mestre.
A Cidade do Sol é governada por Hoh (ou o Metafísico) que congrega os poderes temporal e espiritual, este é assistido por Pon, Sir e Mor – respectivamente a Potência, que se encarrega da arte militar, a Sapiência, das artes liberais e mecânicas e das ciências e o Amor, da geração, da educação e da alimentação –, estes, por sua vez, são assistidos por outros ministros e quanto mais se alarga o círculo de menores doses de poder é investido. O princípio máximo pelo qual se regem os solares é o de comunidade: "Dizem eles que toda a espécie de propriedade tem origem e força na posse separada e individual das casas, dos filhos e das mulheres. Isso produz o amor próprio e cada qual gosta de enriquecer e aumentar os herdeiros; depois, se poderoso e temido, defrauda a coisa pública; se débil, de nascimento obscuro e falho de riqueza, devém avaro, intrigante e hipócrita. Ao contrário, perdido o amor próprio fica sempre o amor da comunidade." Este carácter taxativo estende-se a toda a organização da cidade, bem como à relação descomplexada com o conhecimento
.

Convencionalmente o género literário oposto à utopia é a distopia - se a primeira é a construção de uma sociedade igualitária e harmoniosa que cria anti-corpos para se defender do mal, a segunda é um modelo social oligárquico que exerce o seu domínio sobre a massa por meio, como em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, da permanente vigilância ou outra qualquer forma de repressão - mas a mim a sua relação parece ser antes de consanguinidade. Seja sob o pretexto de criar um equilíbrio social perfeito ou uma massa humana servil e muda, ambos os cidadãos, utópicos e distópicos, se vêem privados do direito de escolha, todos são ao dispor de uma máquina organizada e tentacular, que já riscou um traço grosso e intransponível entre o bem e o mal
. O habitante da utopia tem tantas hipóteses de desenvolver uma depressão como o de uma distopia, pois a ambos foram retirados espaço e tempo para terem dúvidas, das quais ingenuamente não sentem a falta, porque não passam pela necessidade de decidir.
Assim, se a utopia é perfeita o suficiente para suportar um contrário simétrico, o seu opositor deve ser o romance. Afinal não é este o género que verte o princípio do individualismo sobre cada livro e o afoga no mais absoluto relativismo? Não é o romance que duvida e problematiza, enquanto que a utopia e a distopia, por vias divergentes, ordenam e solucionam?
Apesar de as definições negativas não serem as mais perfeitas, elas não deixam de ser úteis: um romance é aquilo que não é A Cidade do Sol, ou a Utopia de Thomas More - que, de resto, muito se parecem fisicamente entre si, e nisso contrastando com as distopias que se conseguem metamorfosear de livro para livro em sistemas opressivos maquiavelicamente mais deliciosos do que os sistemas utópicos.
O romance não tem de pensar uma realidade caótica, pensa antes um sistema cujas regras não o abrange em toda a sua extensão, cujas regras nem sempre são para cumprir.

Porque Salinger parou de publicar


Em boa hora o Jornal de Letras (nº 1002) se lembrou de publicar um extensíssimo artigo sobre títulos. Se assim não fosse talvez chegasse a velha sem saber que já tinha lido Uma Agulha no Palheiro, talvez morresse convicta que tinha lido apenas À Espera no Centeio, quando não só li os dois como um terceiro: O Apanhador no Campo de Centeio. E todos eles obra de J. D. Salinger, de 1951.
Acrobacias editoriais e da tradução que evidenciam a problemática da ontologia literária, e que agora não interessam, a não ser pelos efeitos de colagem e de descolagem que se oferecem como forma de expressar o problema central de, no original para dissipar dificuldades titulares,
The Catcher in the Rye. O problema é um adolescente, Holden Caulfield, simplesmente porque a adolescência é sempre um problema: o que estava tão bem colado, começa a parecer descolar-se e muitas vezes nem se percebe porquê. Numa linguagem de gramo, não gramo e do género – que se aplica a tudo e dispensa definições – o mundo de Holden estava bem dividido e sem gradação de permeio entre aquilo de que gosta e aquilo de que não gosta. Mas ao fugir do colégio - de onde foi expulso e sem os pais saberem ainda - e ter de passar alguns dias em Nova Iorque numa clandestina independência, as certezas de Holden descolam-se das coisas. A herança infantil do "porque sim" ou "porque não" deixa de ser operacional num mundo em que ser advogado não significa estar colado a um ideal de justiça. Para Holden de 16 anos os armantes que com ele se cruzaram pelos colégios onde estudou eram facilmente reconhecíveis, mas com as subtis aparências dos adultos é mais complicado lidar – como com a simpatia do professor que afinal talvez fosse assédio. E na medida em que a relatividade não impõe regras ao jogo das colagens, tudo o que se pode colar pode igualmente descolar, para posteriormente colar outra coisa, ou mesmo não colar nada.
No vazio do futuro adulto Holden vê-se profissionalmente como uma espécie de vigilante que não permite às crianças, que brincam num campo de centeio, cair no abismo. São as imagens complexas que começam, perto do final do romance, a romper uma linguagem adolescente quase que binária, tentando acompanhar uma realidade mutável e resistente à percepção.

É em imagens oníricas que Holden se tenta refugiar quando o sentido lhe escapa por entre o entendimento - quer fugir com uma miúda, casar com ela, trabalhar numa bomba de gasolina distante e nunca mais ver ninguém conhecido ou então quer fugir e viver sozinho numa cabana isolada ou então... Phoebe, a irmã mais nova, é quem o traz de volta na linguagem simples e directa de criança que Holden não quer ter de abandonar:
se tu vais fugir, eu vou contigo!
Quem me dera poder reler The Catcher in the Rye quando tivesse 16 anos.