quinta-feira

Porque estava a ler Sereníssima República de Machado de Assis

A Cidade do Sol é um título incontornável no género utópico. Escrito por Tommaso Campanella em 1623 sob a forma de diálogo, em que um Almirante descreve uma cidade que visitou a um Grão-Mestre.
A Cidade do Sol é governada por Hoh (ou o Metafísico) que congrega os poderes temporal e espiritual, este é assistido por Pon, Sir e Mor – respectivamente a Potência, que se encarrega da arte militar, a Sapiência, das artes liberais e mecânicas e das ciências e o Amor, da geração, da educação e da alimentação –, estes, por sua vez, são assistidos por outros ministros e quanto mais se alarga o círculo de menores doses de poder é investido. O princípio máximo pelo qual se regem os solares é o de comunidade: "Dizem eles que toda a espécie de propriedade tem origem e força na posse separada e individual das casas, dos filhos e das mulheres. Isso produz o amor próprio e cada qual gosta de enriquecer e aumentar os herdeiros; depois, se poderoso e temido, defrauda a coisa pública; se débil, de nascimento obscuro e falho de riqueza, devém avaro, intrigante e hipócrita. Ao contrário, perdido o amor próprio fica sempre o amor da comunidade." Este carácter taxativo estende-se a toda a organização da cidade, bem como à relação descomplexada com o conhecimento
.

Convencionalmente o género literário oposto à utopia é a distopia - se a primeira é a construção de uma sociedade igualitária e harmoniosa que cria anti-corpos para se defender do mal, a segunda é um modelo social oligárquico que exerce o seu domínio sobre a massa por meio, como em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, da permanente vigilância ou outra qualquer forma de repressão - mas a mim a sua relação parece ser antes de consanguinidade. Seja sob o pretexto de criar um equilíbrio social perfeito ou uma massa humana servil e muda, ambos os cidadãos, utópicos e distópicos, se vêem privados do direito de escolha, todos são ao dispor de uma máquina organizada e tentacular, que já riscou um traço grosso e intransponível entre o bem e o mal
. O habitante da utopia tem tantas hipóteses de desenvolver uma depressão como o de uma distopia, pois a ambos foram retirados espaço e tempo para terem dúvidas, das quais ingenuamente não sentem a falta, porque não passam pela necessidade de decidir.
Assim, se a utopia é perfeita o suficiente para suportar um contrário simétrico, o seu opositor deve ser o romance. Afinal não é este o género que verte o princípio do individualismo sobre cada livro e o afoga no mais absoluto relativismo? Não é o romance que duvida e problematiza, enquanto que a utopia e a distopia, por vias divergentes, ordenam e solucionam?
Apesar de as definições negativas não serem as mais perfeitas, elas não deixam de ser úteis: um romance é aquilo que não é A Cidade do Sol, ou a Utopia de Thomas More - que, de resto, muito se parecem fisicamente entre si, e nisso contrastando com as distopias que se conseguem metamorfosear de livro para livro em sistemas opressivos maquiavelicamente mais deliciosos do que os sistemas utópicos.
O romance não tem de pensar uma realidade caótica, pensa antes um sistema cujas regras não o abrange em toda a sua extensão, cujas regras nem sempre são para cumprir.

Porque Salinger parou de publicar


Em boa hora o Jornal de Letras (nº 1002) se lembrou de publicar um extensíssimo artigo sobre títulos. Se assim não fosse talvez chegasse a velha sem saber que já tinha lido Uma Agulha no Palheiro, talvez morresse convicta que tinha lido apenas À Espera no Centeio, quando não só li os dois como um terceiro: O Apanhador no Campo de Centeio. E todos eles obra de J. D. Salinger, de 1951.
Acrobacias editoriais e da tradução que evidenciam a problemática da ontologia literária, e que agora não interessam, a não ser pelos efeitos de colagem e de descolagem que se oferecem como forma de expressar o problema central de, no original para dissipar dificuldades titulares,
The Catcher in the Rye. O problema é um adolescente, Holden Caulfield, simplesmente porque a adolescência é sempre um problema: o que estava tão bem colado, começa a parecer descolar-se e muitas vezes nem se percebe porquê. Numa linguagem de gramo, não gramo e do género – que se aplica a tudo e dispensa definições – o mundo de Holden estava bem dividido e sem gradação de permeio entre aquilo de que gosta e aquilo de que não gosta. Mas ao fugir do colégio - de onde foi expulso e sem os pais saberem ainda - e ter de passar alguns dias em Nova Iorque numa clandestina independência, as certezas de Holden descolam-se das coisas. A herança infantil do "porque sim" ou "porque não" deixa de ser operacional num mundo em que ser advogado não significa estar colado a um ideal de justiça. Para Holden de 16 anos os armantes que com ele se cruzaram pelos colégios onde estudou eram facilmente reconhecíveis, mas com as subtis aparências dos adultos é mais complicado lidar – como com a simpatia do professor que afinal talvez fosse assédio. E na medida em que a relatividade não impõe regras ao jogo das colagens, tudo o que se pode colar pode igualmente descolar, para posteriormente colar outra coisa, ou mesmo não colar nada.
No vazio do futuro adulto Holden vê-se profissionalmente como uma espécie de vigilante que não permite às crianças, que brincam num campo de centeio, cair no abismo. São as imagens complexas que começam, perto do final do romance, a romper uma linguagem adolescente quase que binária, tentando acompanhar uma realidade mutável e resistente à percepção.

É em imagens oníricas que Holden se tenta refugiar quando o sentido lhe escapa por entre o entendimento - quer fugir com uma miúda, casar com ela, trabalhar numa bomba de gasolina distante e nunca mais ver ninguém conhecido ou então quer fugir e viver sozinho numa cabana isolada ou então... Phoebe, a irmã mais nova, é quem o traz de volta na linguagem simples e directa de criança que Holden não quer ter de abandonar:
se tu vais fugir, eu vou contigo!
Quem me dera poder reler The Catcher in the Rye quando tivesse 16 anos.