quinta-feira

A Identidade do Romance

ouvi alguém dizer há muito tempo: quando estiverem deprimidos, o melhor remédio é ler um romance. não perguntei porquê e muitas vezes essa frase volta de modo interrogativo.

penso agora que poderá ter a ver - expressão frustrada que tenta ocultar, revelando, que se desconhece a natureza da relação entre dois termos -, reformulando: ler romances em estados depressivos cumpre a função de analgésico, espera-se que mais do que isso, a função curativa. porque o romance põe em contacto com um estado de fraqueza, de vulnerabilidade, que em nenhum outro lugar pode ser encontrado de forma tão pouco preocupada com a dissimulação, ou antes, o romance é a própria simulação desse estado de fraqueza, e que só pode ser lido, em estados depressivos, como uma escrita sobre o eu que lê. o fracasso no romance é visto de dentro, semelhante ao estado depressivo que tudo vê a partir de dentro. a leitura do romance é o encontro das palavras que dizem ao ouvido esse fracasso próprio. porque o romance é segredo e nada há de mais impessoal que um segredo.

o estado depressivo é a frustração de tentar ocultar, revelando, o desconhecimento da natureza de uma relação entre dois termos, sendo que um deles é sempre eu. uma queda em consciência na qual não se pode confiar, porque a função da censura se instabilizou: tornou-se evidente no estado depressivo que todo o gesto é revelador, mesmo e sobretudo quando tenta ocultar. assim, a única forma de continuar é parado, na esperança de ser esse o gesto capaz de escapar ao jogo de ocultação e revelação do eu.
o romance entra por essa instabilidade e perscruta, invade, revela a intimidade da crise - essa consciência do desajuste entre entre o que se revela e o que se oculta. a cura possível será então a relativização da eficácia do jogo: não adianta cessar o gesto, se também essa cessação é plena de significação. uma significação que um romance pode descrever, esvaziando-a assim daquilo que a era a expressão quieta da sua individualidade.

(no romance está descrita a queda: o romance moderno transportou as fases morfológicas do contar por meio da aventura - a saga pelo regresso ao equilíbrio perdido no início narrativo - para o plano interno do protagonista. a aposta é no estado da consciência, o grande protagonista do romance moderno.)

Identidade de Milan Kundera centraliza uma vida a dois, na qual descola como se fossem duas películas esses dois um do outro, para os observar em separado, na sua intimidade e no seu próprio tempo - muitos episódios do romance são duplicados na vivência primeiro de um elemento e depois do outro, porque as possibilidades físicas do romance assim obrigam. evidencia esta duplicação temporal do contar o entendimento também ele desajustado a que os acontecimentos partilhados pelos personagens estão sempre sujeitos, se não for mais exacto dizer condenados. desde o início do romance que se estabelece a noção de vigilância como uma inevitabilidade multidireccional, mesmo num restrito universo como é o amoroso, de duas pessoas, em que a atenção que uma dedica à outra não deixa de ser uma forma de vigilância, como um processo de encadeamento da identidade. (a identidade deve ter sido das coisas mais estranhas que aconteceram ao homem. não houvesse memória e esse encadeamento era um vazio imperceptível.)

com o romance lido, os personagens kunderianos cientes de nada do que façam e do que não façam escapará a esse poder vigilante e interpretativo, o leitor em estado depressivo terá também de o aceitar e de reaprender a relativizá-lo.