domingo

random generarion ou um último reduto

http://www.youtube.com/watch?v=ZNkN_xCXozw

Há dias que se confrontam na minha cabeça um filme e um anúncio publicitário: O Cavalo de Turim, o último filme de Béla Tarr, e o mais recente anúncio Moche - random generation.

São 146 minutos de cinema cortados em poucas dezenas de planos-sequência e distribuídos por seis dias de narrativa - um pai, uma filha e um cavalo que se recusa a andar.
A crítica tem apontado de forma unânime a presença da morte no filme, mas mais premente ainda parece-me ser o profundo isolamento. Não são apenas as personagens que estão isoladas, o próprio filme passa-se completamente isolado - em corte absoluto com civilização e contemporaneidade.   
A certeza de morte surge e pai e filha não se esforçam por adiá-la, é certo; mas antes disso já eles levavam uma existência quase sem testemunhas e sem luta pela sobrevivência - em pacífica relação com a natureza, mesmo quando esta lhes tem para oferecer uma tempestade e a falta de água no poço.
Face a isto, abandonam a casa e o cavalo que se recusa a andar, e partem com todos os seus pertences rumo à vila; contudo, a câmara não os segue: vê-os, a partir de casa, afastarem-se devagar, e aguarda pacientemente que eles regressem pelo mesmo caminho, sem uma justificação que não seja da ordem da especulação, sem uma única palavra, por parte do pai, da filha ou do discreto narrador sobre o voltar para trás. Voltam silenciosa e naturalmente à sua casa da rotina.
O sentido de repetição havia até então sido explorado como o centro sintático das suas vidas. A repetição era forma de expressão, a repetição dos gestos dia após dia enunciava os diálogos entre pai e filha. E a harmonia em que as cenas se repetiam não era menor que a beleza das cenas a preto e branco espaçosas e pesadas. A coreografia da repetição não tem nenhuma dimensão de resistência à novidade (aquela que resulta da convivência com a civilização e contemporaneidade) - aliás, isto é expresso pelo vizinho que num dos dias lhes bate à porta para pedir palinka: não há razão para resistir, para criar redutos.
E, contudo, Béla Tarr constrói essa minúscula fortificação espaço-temporal, que resulta não como a negação ou a recusa da originalidade e da velocidade, mas num hino à cadência da repetição até ao limite, e até à morte.

Por isto, O Cavalo de Turim tornou evidente do que é trata o anúncio Moche. Um minuto de dezenas de imagens e slogans compactando a urgência da velocidade e a premência da originalidade.

cabaret eléctrico, joão silveira

da primeira vez que e o joão falámos sobre o cabaret eu referia-me a uma estrutura de prólogo, epílogo e 3 partes de permeio e ele referia-se a 5 partes. estando as 5 partes numeradas e tendo apenas a primeira e a última designações de prólogo e epílogo, ambos tínhamos razão.
da mesma forma, pode ter acontecido eu ter lido um livro que não existe para ele, nem para mais ninguém. porque o que nele acontece é ambíguo, indeciso, paranóico. é um universo de paranóia em torno das possibilidades que a passagem do tempo traz, que o envelhecimento obriga a apresentarem-se, e por isso é negro, é repetitivo, é o retrato de um narrador que não vê forma de escapar à repetição e não vê a tentativa senão como o caminho que invariavelmente vai dar ao beco do falhanço.
perguntaram muitas vezes ao joão se o que se passa no cabaret lhe aconteceu a ele, ele começou por dizer que não, ninguém acreditou nele e ele passou a dizer que sim, que lhe aconteceu tudo o que lá está. o tom autobiográfico que suscitava esta pergunta, também eu o senti e acredito que tudo o que lá está aconteceu ao joão ou podia ter acontecido ou ele teme ou deseja que aconteça ou outra coisa qualquer. porque naturalmente o joão conhece o universo da paranóia que O., o narrador, explora. e mais do que isso porque é escrito num registo de torrente comprometida com a autenticidade emocional.
acredito que a certa altura se tenha vontade de dizer a O., levanta-te e faz qualquer coisa em vez de ficares sentado no café a prever cenários de queda, de apocalipse padronizado; contudo, à medida que as partes avançam, desenha-se uma possibilidade de redenção, que não podia vir senão do cruzamento entre os mecanismos que o joão cria não para contar mas para escrever e a matéria do que é escrito. "Afinal, o que me ocupou tantos anos fui eu mesma, o que me ocupou não foi senão eu mesmo. Afinal, está tudo bem." ... "(mentira)". A redenção não está no modo de dizer romântico, mas no entrelaçamento dos sexos.

de um livro assim, em que essa matéria nunca deixa de ter uma existência (como dizia acima) ambígua, indecisa e paranóica, porque antes de tudo ela está ao dispor de mecanismos de escrita, dizer que é um 5 ou um 1+3+1 é simultaneamente não dizer nada sobre o livro (na medida em que não revela), mas também é dar corpo a duas interpretações radicalmente diferentes, e que comece a discussão: nada fica decido no cabaret, como nada pode ficar selado na antecipação, na previsão. cabaret eléctrico não é um livro que toma decisões, só precisaria de o fazer se quisesse contar, é antes uma série de cenários de tentativa e erro, do peso do compromisso quando o cheiro a recomeço vem tentar de todos os lados.

se não estiver bem com a sua vida, não o leia. se estiver bem com a sua vida , não o leia. não é um livro de ajuda. nem sequer é um livro para adultos.