sábado

dever/haver, joão silveira

ofereceram-me recentemente versos meus sem que eu tenha percebido que eram meus. gostei deles e pensei que talvez os gostasse de voltar a ler com mais calma (no modo "leitura de poesia"). isso aconteceu e eu reconheci-os finalmente. começou por ser agradável - ter podido olhar para eles à distância.

mas depois fui ver o "meia-noite em paris" e gil pender ridicularizou a sogra quando esta disse que tinha visto um filme muito bom na noite anterior mas do qual já nada recordava, uma coisa tão boa que olvidável da noite para o dia, disse-lhe ele.

os meus versos tão bons que os escrevi e nunca mais me lembrei deles.

depois li "dever/haver", e do que me lembro? de um verso ("falava como as fotografias" e talvez nem seja rigorosamente assim) e das coisas que me ocorreram durante a leitura de um só fôlego do livro (que não é o modo "leitura de poesia", mas como não sei exactamente o que tenho em mente quando penso isto, deixo-me ir pela curiosidade de ler o poema seguinte, talvez seja o modo de "leitura de poesia urgente", e ficar sem fôlego).
ocorreu-em que era um livro de cenários apocalípticos mas com um despontar de vida ou esperança ou beleza a todo o momento, sem que o cenário traia o despontar e sem que o despontar apanhe o cenário desprevenido. deve ser do vocabulário vivo e sensível de encontro aos objectos abandonados nos poemas.

nos poemas olvidáveis. tão olvidáveis como os meus versos irreconhecíveis.

mas depois aconteceu mais qualquer coisa de que não me lembro e que contudo me tranquilizou: fazer uma cicatriz com um verso, como fazem tantos clássicos universais, tem exactamente a mesma capacidade transformadora que um leve corte na superfície da pele, é só uma questão de quantidade de sangue.
o teu corpo e o meu são de carne, de pele e não menos de esquecimento. tão avessos a parar por um rio como por uma gota de sangue.