quinta-feira

Apontamentos a "Ana"

António Reis e Margarida Cordeiro fizeram um filme há 28 anos, chamaram-lhe "Ana". Fizeram também uma filha, a quem puseram o mesmo nome. Antes ou depois disso, ele disse numa entrevista que Ana encerrava (tanto quanto possível e) simultaneamente a noção de equilíbrio e a de desequilíbrio. Num filme como "Ana", com a dimensão que tem, cabe tanto o equilíbrio como o desequilíbrio. No entanto, entremos por outra porta:

poucos minutos após o início compõe-se um quadro que podia ser bíblico - uma mulher sob um manto segura um bebé no colo, rodeada por familiares, todas as atenções se centram nela, num silêncio sagrado.
Pouco adiante uma cena num rio, identificável com o baptismo no rio Jordão, e por aí fora (lá para o final uma mulher caminha sozinha em direcção a um monte, talvez de oliveiras, já não interessa se assim é ou não, pois já ficou uma marca profunda de reconstituição).

O movimento dos personagens é quase sempre lento, comportam-se como se buscassem a cada gesto a compreensão do próprio movimento, observam surpreendidos (embora sem infantilização) o seu gesto, tentando apanhar em falso o segredo desse gesto, o seu segredo original. Mas esse segredo, apesar de se esconder à vista de todos na eterna reconstituição do ritual, é irrecuperável. O seu fundamento foi sendo obscurecido pela sombra do tempo. Resta a estes personagens repetir os gestos dos ancestrais, e é com naturalidade que eles acedem à repetição (o retirar do braseiro da cama aquecida noite após noite, o aquecer das mãos a quem chega da rua gélida, ...).

São corpos numa terra fria que sabem como e onde procurar o calor. E todo o "Ana" se vai construindo sobre a ideia de que só o corpo pode percepcionar os movimentos originais, que encerram os seus próprios fundamentos. Como se existisse uma memória corporal (e talvez colectiva), um mecanismo intuitivo (ou instintivo), de natureza idêntica à da terra: tudo o que nasce da terra prossegue o seu crescimento na exacta e invariável direcção da morte.

É então que a velha que protagoniza o filme mostra sangue na mão. Morte... E irracionalmente se gostaria de erguer uma voz contemplativa a dizer: não, tu não podes morrer, tu és as ancas fecundas que se morrerem enterram junto a si todos os segredos da terra, não morras, por favor.
Não morras, se não deixas-nos a nós todos, as crianças do filme, os velhos do filme, os animais do filme, as paisagens do filme, aos espectadores na sala, a todos sem acesso ao segredo. Deixas-nos na condição do bebé que aparece em três cenas e em duas das quais nem sequer se ouve o seu choro.

Se ao fim de menos de duas horas de filme, aquela figura de matriarca já nos parecia a salvação, que dizer de um Jesus ou de algum seu parente messiânico?
Talvez a linha traçada a paralelo entre as imagens ritualísticas e as bíblicas sejam de uma grande liberdade interpretativa, mas dê-se-lhe o benefício de funcionarem no filme como a representação do (único?) sistema holístico, cuja origem é identificável - a bem do argumento... Assim, essa figura matriarcal, conciliada com a messiânica, era, no filme, a garantia de que os rituais que se repetem desde o gesto originário eram perenes. Se a velha morre, e apesar de o filme nos ter mostrado até aqui que esse gesto está secretamente guardado no corpo de cada um e que no momento em que a reconstituição ritualística chegar o corpo saberá agir, nesse momento em que a morte ameaça a velha, o objecto de desejo torna-se a perenidade da velha.

Isto é medo. O medo de não conseguir apanhar o segredo do gesto em falso e ser-se falso durante o ritual. Mas que falsidade será possível no corpo?

quarta-feira

antes de começar

antes de começar é preciso ler tudo.
só assim a precisão
resta saber de quê

felizmente há morte!