sábado

E Então Vai Entender, Claudio Magris

"orfeu calculava que eurídice viesse logo atrás de si, mas queria olhar para trás e certificar-se de que assim era. e voltou-se. cedo demais." (de uma história da mitologia)

o mito de orfeu recontado por magris tem a voz de eurídice, a mulher, companheira do poeta, do poeta que antes de mais é poeta, sem deixar de ser o companheiro de eurídice ou o por ela acompanhado.
depois da morte dela, orfeu consegue uma visita à Casa de Repouso em que eurídice se encontra e todo o discurso sequencial do livro se situa após a entrada de orfeu e a sua saída desacompanhado de eurídice.
à condição de(sta) mulher preside a consciência do papel que lhe cabe, o papel de companheira activa no amor e na arte - é ela que lhe conduz a mão por baixo dos lençóis quando ele tem medo, é ela que lhe limpa os excessos na poesia e na vida, que lhe depura a vida e a poesia. é a companheira do poeta que tem a capacidade da vida continuada. mas ela morre, e sabendo a falta que faz na vida dele, não sabe, ao mesmo tempo, porque é que sem ela ele se volta a entregar à boémia e àquelas que o admiram e querem um pouco dele.
ela, a que personifica a vida suspensa (que tanto se pode dar pela loucura, pela doença ou pela morte), não compreende que a vida do poeta tenha também ela de se alimentar de um sentido de suspensão - descompromisso com a vida continuada de todos os dias.
a novidade desta forma de recontar o mito reside, para além desta reflexão sobre a condição do poeta em confronto com o lugar do amor, no saber-se que eurídice não queria voltar. por um lado, porque sabia ir ser interrogada sobre o estado de morte e a isso teria de responder que pouca diferença há do estado de vida e consequentemente aniquilaria todas as expectativas sedentas de orfeu, e por outro lado, já se habituara àquela vida, encontrara na morte outra forma de vida continuada. assim, o virar-se para trás de orfeu não foi consequência de uma ânsia de enamorado mas sim uma ânsia de saber, de conhecer a morte.
"não, não foi somo disseram, que se voltou por demasiado amor, incapaz de paciência e de ficar à espera, e portanto por falta de amor."

nesta escalpelização do mito não há equilíbrio possível entre vida e morte, não há equilíbrio possível entre arte e amor.
a arte é procura de verdade sobre os grandes palavrões (amor, origem, morte, arte) e é sobre encontrar sentido nas conexões entre eles e é liberdade para poder seguir as sugestões desses encontros, e o amor é a ilusão de o mundo a dois ser suficiente, a ilusão da suficiência da exclusividade a dois. neste mundo a dois encena-se novamente, em escala mais reduzida, a impossibilidade de os poderes de dois corpos diferentes se equilibrarem: um sobrepor-se-á sempre ao outro. a vida continuada dos dias não diz bem com a vida suspensa da poesia

sexta-feira

Breves Notas sobre as ligações, Gonçalo M. Tavares

""sei muito pouco sobre o que é ter." (MGL)

cópula: duas coisas distintas simulam uma ligação que a cada momento ameaça romper-se até ao momento em que definitivamente se rompe.

sacrifício: adormecer quando alguém acabou de abrir a porta: sacrificar a curiosidade."


a distinção em que tenho vindo a pensar a propósito da escrita de Llansol e de Kundera é da mesma natureza deste encontro entre fragmento de Llansol e definições de Tavares (Llansol por Llansol e Tavares por Kundera, as primeiras pela literatura da bondade, da generosidade e os segundos pela literatura da hipocrisia):

de um trecho sobre o despojamento, o ter não-conhecimento de posse, a sugestão de um corpo continuum de experiências, GMT desenvolve a irredutibilidade da posse impossível do corpo, e a palavra que tem a dizer sobre a curiosidade (que poderia servir como a força vital do corpo continuum de experiência) é sacrifício, de entre todas as possíveis...

do traço de uma dupla imagem GMT e MK vêem o copo meio vazio e MGL, o copo meio cheio.