sexta-feira

uma leitura singular



"Mr. Propter não tem uma vida sexual. Isto faz com que não seja uma personagem convincente."
É um parágrafo de Um Homem Singular: desarticula o dualismo cartesiano, se ele ainda necessitasse de ser desarticulado; destaca o lugar do sexo como o momento erógeno de contacto entre o tempo e a extensão da matéria e da mente; convoca a divergência e a convergência sobrepostas na linha que divide realidade e ficção.
Contudo, não o faz sozinho. A presença destas questões ganha corpo sobretudo na passagem de um curto parágrafo para o parágrafo seguinte.
Sugestão de leitura de um equilíbrio instigante que acontece, em termos narrativos, no início de uma aula de George, protagonista e professor, e que tem a seguinte continuação:
"E por aí adiante... George está ali, de pé, sem dizer quase nada, deixando que eles se divirtam. Preside ao romance como se fosse um empregado numa barraca de feira, encorajando a multidão a atirar e a atingir os seus alvos; é tudo alegria são."

domingo

rendez-vous


não sei quem é andré téchiné, mas rendez-vous faz do cinema o lugar para o encontro mais impetuoso na história da humanidade, o encontro mais insensível à geografia traçada pelo desconhecido entre os homens: um homem vê uma mulher, segue-a, força a entrada pela porta do seu quarto e deposita-lhe nas mãos o rumo da sua própria vida, se ela recusar o encontro entre ambas as vidas, ele prefere morrer. ele morre, quem sabe se não se terá suicidado?
porém, a sua morte não pode ser imputada à mulher, pois a mulher aceitou a vida do desconhecido, poderá sê-lo à dinâmica habitual de convívio com conhecidos - que, por sua vez, está tão arreigada de continuidade quanto está interdito o convívio com desconhecidos.

(será isto a vida adulta? manutenção dos conhecidos e não-exposição a desconhecidos?)

rendez-vous é um filme de acções, vive do que acontece, tanto quanto do que não acontece, escapando à coreografia de momentos de leitura psicológica. isto é, o implícito aqui só tem consistência se instantaneamente se deixar arrebatar pelo explícito, se se manifestar numa acção. o desejo de quentin de se aproximar de nina desmaterializa-se-ia no etéreo se ele não a perseguisse de imediato.
fala-se de tragédia nas críticas a este filme, pois como não, se estas linhas implícitas e explícitas, conhecidas e desconhecidas têm de ser aceites pelo tempo para serem acção?

quinta-feira

cópia certificada

cópia certificada começa com a apresentação de um livro, com o mesmo título, de um pensador de arte: original e cópia, o que os distingue, os que os aproxima, o que os valoriza e desvaloriza, etc. uma galerista interessa-se pelo pensador e eles encontram-se, passeiam, conversam, desentendem-se e são, por terceiros, dados como casal - expondo a imediatez da leitura enquanto casal de qualquer justaposição de homem e mulher.
a mulher deixa-se levar pela ilusão criada por terceiros e o homem deixa-se contagiar por ela (impossível distinguir por qual delas, quando não por ambas e vice-versa: o mesmo se aplica à mulher).

nas suas discussões sobre arte, as posições de um e outro são opostas: ela está demasiado perto das concepções com que vive, uma proximidade que acolhe todo o tipo de excepções, que se exprime num axioma milenar aglutinado à simplicidade de um "ah, mas isso é outra coisa..." ou de um "então, porque sim, ora...", isto é: uma linha de pensamento que compartimenta intuitivamente a teoria e a vida, que lhes dá moradas diferentes; ele distancia-se da vulgaridade da vida para lhe poder contemplar o ângulo mais obtuso, para poder percepcionar de longe os momentos simbióticos da arte e da vida - ele distancia-se para poder afirmar que a irmã dela, que ele não conhece senão pelas histórias mínimas que ela lhe contou, é um original e, consequentemente, ela própria é uma reprodução. uma reprodução de quê não é o que está em discussão, antes os mecanismos disponíveis para reconhecer um original e uma cópia. em que termos está presente esta discussão que desde cedo no filme deixa de ser tema entre o homem e a mulher?

o reconhecimento do original e da cópia está presente no casal, que ao longo de um desentendimento crescente e por vezes irreversível, se apodera da ilusão de serem um casal e nos deixam, a nós espectadores, sem saída à porta de decidir se efectivamente eles o são ou não, se as histórias que eles começam por parecer inventar no momento e as supostas recordações que eles vão buscar a um ponto sempre mais distante e os locais por onde eles passam e aos poucos se vão tornando mais familiares à sua história comum... à porta de decidir se eles são efectivamente um casal ou não, indecidibilidade tão mais aguda quanto mais próximo do fim nós estamos, resta-nos a imagem da história que o homem contou e que coincidentemente ou não incluía a mulher: uma mãe e um filho estão junto a uma estátua grega famosa, o filho admira-a de olhos brilhantes, a mãe sebe que a estátua original está num museu distante e não ali no meio de uma praça mas não partilha a informação com o filho, que observa com solenidade uma cópia.

se o casal não nos disser em que momento da história é que esteve a brincar e em que momento é que esteve a falar a sério, não há como saber. eles eram originalmente um casal casado há quinze anos quando se fizeram passar por desconhecidos ou reproduziram uma cena de casal sem se conhecerem de lado algum? a única saída possível à porta da decisão é que querendo ou não, tendo sido desde há quinze anos ou não eles naquele domingo foram um casal durante uma tarde inteira.

o filme acabou mas a especulação não se intimida com a noite: se na vastidão artística as afirmações tendem a ser de alcance cada vez menos amplo - se se pode dizer não importa o é ou não é antes o é, tudo se pode dizer e nada importa. e se se disser ainda que homem e mulher falavam por vezes línguas diferentes?

segunda-feira



uma imagem não vale por mil palavras. uma palavra não vale por mil imagens.
este dinis guarda não vale por nenhuma outra coisa, nem nenhuma outra coisa vale por este dinis guarda. este é o problema da crítica, este é o problema da linguagem a querer falar de qualquer coisa que não seja palavras, bem como de qualquer coisa que sejam palavras.
silêncio, então?
não, mas observando em silêncio este guarda, e mesmo sem ser em silêncio, mais se ouve do que se vê. ouve-se o som do movimento.


não será suficiente como instituinte de arte: as palavras sobre ela dispensarem metáforas? dispensarem um processo de tradução com rede a de um outro sistema significante?

domingo

a história da página que quis ser arrancada para andar sempre comigo

III
Evidentemente que eu estou no decorrer de uma viagem de comboio. A palavra forte não é viagem de comboio, mas no decorrer de. O sol ilumina metade do livro, cortando a página em sombra e luz. Com a trepidação, a minha mão transportada pelo comboio treme, e a pequena garrafa com água para beber tomba.
Do ponto de vista dos meus olhos, esta é uma história não humana, entre coisas, uma menos-valia que decidi contar, porque pô-la a nu equivale a libertá-la da sua morte inglória e banal.
Não verteu a água, mas mudou de posição dentro da garrafa. Oscilou, estendeu-se à superfície tendo por horizonte apenas os meus olhos. Esse fenómeno simples foi visto por um outro que o escreveu.
O universo multiplica-se com a descrição minuciosa e atenta da viagem.

segunda-feira

Canino (Yorgos Lanthimos)

Uma história crudelíssima sem um pingo de cozedura misericordiosa. Tudo tão cru, tão físico, como se todo o filme se passasse sob uma luz demasiado branca. Qualquer coisa fica a faltar para amparar da violência dos choques, qualquer subtileza que antecipe a salvação daquelas crianças - cujas idades não se consegue adivinhar -, qualquer subtiliza que nos resguarde de assistir a tanta opressão, qualquer mistério de natureza psicológica ou simbólica que nos liberte do poder das imagens. Mas a linguagem do filme não dá tréguas, não sendo uma linguagem exclusivamente cinematográfica, ela é linguagem no seu mais subversivo estádio da mentira e da dominação. Têm sido referidos, na crítica, os paralelismos com a mecânica dos discursos propagandísticos, ditatoriais. E os seus efeitos exercem-se (afinal talvez Canino seja um filme mais perverso do que poderia parecer...) mais sobre o público do que sobre as crianças. Só ao público e aos pais das crianças - que as isolam num mundo fabricado e estéril - é dado a ver como a capacidade transgressiva, exclusivo humano, é decepada pela mentira, quando esta se desenvolve em boas condições de sistematização e manutenção.
É certo que uma das filhas se escapa da casa, mas que poderá restar a uma criatura infantilizada e incestuosa por sua própria conta sem sequer conhecer o comum sentido das palavras para a comunidade? Não se sabe, porque com o destilar de mais uma cena abrupta o filme termina. E é esta a constante sensação: abruptidão.

Já a propósito de um filme de Raquel Freire, Veneno Cura, havia recordado o relevo das propriedade aristotélicas da compaixão e do medo em qualquer encenação. E talvez esta seja uma forma de entender esse sensação abrupta: ambos os filmes se contorcem em dinâmicas tão próprias e fechadas, que o espectador está condenado a ficar do lado de fora, do lado em que não chega aos personagens para lhes tomar a pele e com eles partilhar dores. Ambos os filmes se sentem tão irremediavelmente atraídos pela crueldade humana, que sentimento algum de redenção pode trespassar das luzes do ecrã.
Ou estaremos apenas demasiado apegados à noção de equilíbrio?

sábado

Vertigem

"quando glenn gould acelera a execução de uma peça, não age apenas por virtuosismo, transforma os pontos musicais em linhas, faz proliferar o conjunto" Rizoma, GD e FG

há uma mulher em Vertigo, há uma mulher em Solaris, há uma mulher em Vertigo, há uma mulher em Solaris, agora mais depressa: há uma mukher em Vertifoo , há uma muher em Solaris, há uma mukher em Vertgo , há uma mulher em solatris, há ukuma em Vdrtigo, á uma lueker em solarii, .....

há uma multiplicidade de mulheres que se distende num sentido de repetição muito particular. em Solaris, a mulher sudece-se em episódios de ressurreição - sem que a memória lhe garanta ser a mesma -, em Vertigo, a mulher vive duas vezes nas mesmas circunstâncias e morre duas vezes nas mesmas circunstâncias, mas nunca é a mesma. (sendo que Vertigo subtiliza a repetição por meio da alternância entre o olho e o ouvido)

a velocidade faz convergir as questões da realidade e da ilusão para um conflito de identidade. no conflito da identidade aos olhos de quem ama. e quem ama ama o quê?
a velocidade faz os conjuntos? e os conjuntos fazem também rizoma com o desejo, "porque é sempre em rizoma que o desejo se move e produz."

quinta-feira

"happiness is an idea that is obsolete", somewhere in Solaris

arrumava-se assim: tudo é ilusão, tudo é ficção, venha o Coleridge e pronuncie pausada e silabadamente: suspension of disbelief!


acabava-se tudo... não fosse haver um problema que não se deixa dissolver: Solaris acaba sobre a casa do pai, numa ilha, a meio do oceano.
Em casa do pai de Christian, no início do filme de Tarkovky, estão quatro pessoas a assistir a um filme. No filme estão reunidas eminências científicas para avaliar o depoimento de um viajante regressado de Solaris - o planeta inteligente sobre o qual pouco se conhece. Eminências e depoente estão em contacto por uma espécie de sistema de videoconferência; o depoimento do viajante é suportado por imagens por ele recolhidas no planeta. Burton, o viajante, está presente na sala de estar, assistindo ao filme, e no filme; em ambos os filmes, Burton é interrogado, e em ambos os filmes é tomado por um alucinado que não pode ter visto o que conta.
Este desdobrar de pessoas em frente ao ecrã, de assistências, remeterá para a circunstância de assistir a um filme. Este desdobrar da presença de Burton, contactável em todos os planos, remeterá para a quebra da fronteira entre dentro e fora do ecrã, entre ficção e realidade.
Depois disto, Tarovsky envia Christian a Solaris para executar a missão que a todos parece a mais sensata: destruir a estação instalada no planeta, visto que pouco sumo científico está a render. Chegado ao seu destino, torna-se rapidamente uma evidência para Christian que o depoimento alucinado de Burton tem algum fundamento. Solaris tem a capacidade de materializar momentos da memória dos que lá estão; Solaris interage de forma visível, sensível e emocional. E surge assim a falecida mulher de Christian: uma criatura afável e plena de dedicação, mas que ele se vê obrigado a negar, por não ser real, tão humanamente irreal que tem a capacidade de se auto-regenerar, de ressuscitar, de não saber quem é. Uma figura humana que usa um vestido do qual só pode sair cortando-o com uma tesoura... que adquire contornos monstruosos ao querer desesperadamente sair duma sala, destrói uma porta de alumínio e corta o seu corpo por não querer estar sozinha. Bizarrias do corpo... No entanto, quanto mais bizarra se torna esta mulher (por mais intensamente cruzar humano e desumano), mais se aproxima Christian da decisão de permanecer neste planeta de encarnação de memórias, menos diferença faz o facto de real e simulacro serem incompatíveis, menos sentido faz ciência e amor serem contrários. A irrelevância desta distinção decorrerá da possibilidade de tomar um pelo outro e vice-versa, de tomar um de acordo com os critérios do outro, de compactuar com a suspensão da descrença.

A certa altura perto do final, Christian está no corredor da estação com a mulher, mais uma vez, morta ao seu lado. Ao fundo do plano, alguém sai a correr de uma das salas e desaparece. Em pouco tempo a mesma figura reaparece no lado oposto do corredor e entra noutra sala. Só aqui se torna explicito que a estação é circular. Christian levanta-se e fica de costas. A imagem difunde-se, funde-se na seguinte e Christian passa a ver-se de frente. Neste efeito de ilusão, quem assinou o pacto perde a capacidade de afirmar peremptoriamente se foi Christian que rodou ou se fomos nós que demos a volta ao corredor.

Apontamentos a "Ana"

António Reis e Margarida Cordeiro fizeram um filme há 28 anos, chamaram-lhe "Ana". Fizeram também uma filha, a quem puseram o mesmo nome. Antes ou depois disso, ele disse numa entrevista que Ana encerrava (tanto quanto possível e) simultaneamente a noção de equilíbrio e a de desequilíbrio. Num filme como "Ana", com a dimensão que tem, cabe tanto o equilíbrio como o desequilíbrio. No entanto, entremos por outra porta:

poucos minutos após o início compõe-se um quadro que podia ser bíblico - uma mulher sob um manto segura um bebé no colo, rodeada por familiares, todas as atenções se centram nela, num silêncio sagrado.
Pouco adiante uma cena num rio, identificável com o baptismo no rio Jordão, e por aí fora (lá para o final uma mulher caminha sozinha em direcção a um monte, talvez de oliveiras, já não interessa se assim é ou não, pois já ficou uma marca profunda de reconstituição).

O movimento dos personagens é quase sempre lento, comportam-se como se buscassem a cada gesto a compreensão do próprio movimento, observam surpreendidos (embora sem infantilização) o seu gesto, tentando apanhar em falso o segredo desse gesto, o seu segredo original. Mas esse segredo, apesar de se esconder à vista de todos na eterna reconstituição do ritual, é irrecuperável. O seu fundamento foi sendo obscurecido pela sombra do tempo. Resta a estes personagens repetir os gestos dos ancestrais, e é com naturalidade que eles acedem à repetição (o retirar do braseiro da cama aquecida noite após noite, o aquecer das mãos a quem chega da rua gélida, ...).

São corpos numa terra fria que sabem como e onde procurar o calor. E todo o "Ana" se vai construindo sobre a ideia de que só o corpo pode percepcionar os movimentos originais, que encerram os seus próprios fundamentos. Como se existisse uma memória corporal (e talvez colectiva), um mecanismo intuitivo (ou instintivo), de natureza idêntica à da terra: tudo o que nasce da terra prossegue o seu crescimento na exacta e invariável direcção da morte.

É então que a velha que protagoniza o filme mostra sangue na mão. Morte... E irracionalmente se gostaria de erguer uma voz contemplativa a dizer: não, tu não podes morrer, tu és as ancas fecundas que se morrerem enterram junto a si todos os segredos da terra, não morras, por favor.
Não morras, se não deixas-nos a nós todos, as crianças do filme, os velhos do filme, os animais do filme, as paisagens do filme, aos espectadores na sala, a todos sem acesso ao segredo. Deixas-nos na condição do bebé que aparece em três cenas e em duas das quais nem sequer se ouve o seu choro.

Se ao fim de menos de duas horas de filme, aquela figura de matriarca já nos parecia a salvação, que dizer de um Jesus ou de algum seu parente messiânico?
Talvez a linha traçada a paralelo entre as imagens ritualísticas e as bíblicas sejam de uma grande liberdade interpretativa, mas dê-se-lhe o benefício de funcionarem no filme como a representação do (único?) sistema holístico, cuja origem é identificável - a bem do argumento... Assim, essa figura matriarcal, conciliada com a messiânica, era, no filme, a garantia de que os rituais que se repetem desde o gesto originário eram perenes. Se a velha morre, e apesar de o filme nos ter mostrado até aqui que esse gesto está secretamente guardado no corpo de cada um e que no momento em que a reconstituição ritualística chegar o corpo saberá agir, nesse momento em que a morte ameaça a velha, o objecto de desejo torna-se a perenidade da velha.

Isto é medo. O medo de não conseguir apanhar o segredo do gesto em falso e ser-se falso durante o ritual. Mas que falsidade será possível no corpo?

quarta-feira

antes de começar

antes de começar é preciso ler tudo.
só assim a precisão
resta saber de quê

felizmente há morte!

terça-feira

Não posso deixar de ficar surpreendida com as extremas parecenças entre Tlon, Uqbar, Orbis Tertius e o País da Magia. Só a descrição de um é um nada diferente da outra, de resto...

segunda-feira

distensão de uma linha

NO MORE TEARS

Quantas vezes me fechei para chorar
na casa de banho da casa de minha avó
lavava os olhos com shampoo
e chorava
chorava por causa do shampoo
depois acabaram os shampoos
que faziam arder os olhos
no more tears disse Johnson & Johnson
as mães são filhas das filhas
e as filhas são mães das mães
uma mãe lava a cabeça da outra
e todas têm cabelos de crianças loiras
para chorar não podemos usar mais shampoo
e eu gostava de chorar a fio
e chorava
sem um desgosto sem uma dor sem um lenço
sem uma lágrima
fechada à chave na casa de banho
da casa da minha avó
onde além de mim só estava eu
também me fechava no guarda-vestidos
mas um guarda-vestidos não se pode fechar por dentro
nunca ninguém viu um vestido a chorar



primeira irrupção de poesia de críptica! este será o terceiro ou quarto poema de Adília Lopes que leio, estou a repensar a ideia que tinha de não gostar de Adília Lopes. este shampoo seca choro, indecidido entre tristeza e alegria, veio dizer que um blogue que procura o romance só à custa de visível obstinação poderia fechar os olhos à poesia.
Não é exactamente diferente dizer um romance ou dizer "Ah quem me dera um vestido
/ que me queimasse" (quarto ou quinto poema de AL)?
Se é escrita, queima igual.

quinta-feira

A Identidade do Romance

ouvi alguém dizer há muito tempo: quando estiverem deprimidos, o melhor remédio é ler um romance. não perguntei porquê e muitas vezes essa frase volta de modo interrogativo.

penso agora que poderá ter a ver - expressão frustrada que tenta ocultar, revelando, que se desconhece a natureza da relação entre dois termos -, reformulando: ler romances em estados depressivos cumpre a função de analgésico, espera-se que mais do que isso, a função curativa. porque o romance põe em contacto com um estado de fraqueza, de vulnerabilidade, que em nenhum outro lugar pode ser encontrado de forma tão pouco preocupada com a dissimulação, ou antes, o romance é a própria simulação desse estado de fraqueza, e que só pode ser lido, em estados depressivos, como uma escrita sobre o eu que lê. o fracasso no romance é visto de dentro, semelhante ao estado depressivo que tudo vê a partir de dentro. a leitura do romance é o encontro das palavras que dizem ao ouvido esse fracasso próprio. porque o romance é segredo e nada há de mais impessoal que um segredo.

o estado depressivo é a frustração de tentar ocultar, revelando, o desconhecimento da natureza de uma relação entre dois termos, sendo que um deles é sempre eu. uma queda em consciência na qual não se pode confiar, porque a função da censura se instabilizou: tornou-se evidente no estado depressivo que todo o gesto é revelador, mesmo e sobretudo quando tenta ocultar. assim, a única forma de continuar é parado, na esperança de ser esse o gesto capaz de escapar ao jogo de ocultação e revelação do eu.
o romance entra por essa instabilidade e perscruta, invade, revela a intimidade da crise - essa consciência do desajuste entre entre o que se revela e o que se oculta. a cura possível será então a relativização da eficácia do jogo: não adianta cessar o gesto, se também essa cessação é plena de significação. uma significação que um romance pode descrever, esvaziando-a assim daquilo que a era a expressão quieta da sua individualidade.

(no romance está descrita a queda: o romance moderno transportou as fases morfológicas do contar por meio da aventura - a saga pelo regresso ao equilíbrio perdido no início narrativo - para o plano interno do protagonista. a aposta é no estado da consciência, o grande protagonista do romance moderno.)

Identidade de Milan Kundera centraliza uma vida a dois, na qual descola como se fossem duas películas esses dois um do outro, para os observar em separado, na sua intimidade e no seu próprio tempo - muitos episódios do romance são duplicados na vivência primeiro de um elemento e depois do outro, porque as possibilidades físicas do romance assim obrigam. evidencia esta duplicação temporal do contar o entendimento também ele desajustado a que os acontecimentos partilhados pelos personagens estão sempre sujeitos, se não for mais exacto dizer condenados. desde o início do romance que se estabelece a noção de vigilância como uma inevitabilidade multidireccional, mesmo num restrito universo como é o amoroso, de duas pessoas, em que a atenção que uma dedica à outra não deixa de ser uma forma de vigilância, como um processo de encadeamento da identidade. (a identidade deve ter sido das coisas mais estranhas que aconteceram ao homem. não houvesse memória e esse encadeamento era um vazio imperceptível.)

com o romance lido, os personagens kunderianos cientes de nada do que façam e do que não façam escapará a esse poder vigilante e interpretativo, o leitor em estado depressivo terá também de o aceitar e de reaprender a relativizá-lo.