quinta-feira

"happiness is an idea that is obsolete", somewhere in Solaris

arrumava-se assim: tudo é ilusão, tudo é ficção, venha o Coleridge e pronuncie pausada e silabadamente: suspension of disbelief!


acabava-se tudo... não fosse haver um problema que não se deixa dissolver: Solaris acaba sobre a casa do pai, numa ilha, a meio do oceano.
Em casa do pai de Christian, no início do filme de Tarkovky, estão quatro pessoas a assistir a um filme. No filme estão reunidas eminências científicas para avaliar o depoimento de um viajante regressado de Solaris - o planeta inteligente sobre o qual pouco se conhece. Eminências e depoente estão em contacto por uma espécie de sistema de videoconferência; o depoimento do viajante é suportado por imagens por ele recolhidas no planeta. Burton, o viajante, está presente na sala de estar, assistindo ao filme, e no filme; em ambos os filmes, Burton é interrogado, e em ambos os filmes é tomado por um alucinado que não pode ter visto o que conta.
Este desdobrar de pessoas em frente ao ecrã, de assistências, remeterá para a circunstância de assistir a um filme. Este desdobrar da presença de Burton, contactável em todos os planos, remeterá para a quebra da fronteira entre dentro e fora do ecrã, entre ficção e realidade.
Depois disto, Tarovsky envia Christian a Solaris para executar a missão que a todos parece a mais sensata: destruir a estação instalada no planeta, visto que pouco sumo científico está a render. Chegado ao seu destino, torna-se rapidamente uma evidência para Christian que o depoimento alucinado de Burton tem algum fundamento. Solaris tem a capacidade de materializar momentos da memória dos que lá estão; Solaris interage de forma visível, sensível e emocional. E surge assim a falecida mulher de Christian: uma criatura afável e plena de dedicação, mas que ele se vê obrigado a negar, por não ser real, tão humanamente irreal que tem a capacidade de se auto-regenerar, de ressuscitar, de não saber quem é. Uma figura humana que usa um vestido do qual só pode sair cortando-o com uma tesoura... que adquire contornos monstruosos ao querer desesperadamente sair duma sala, destrói uma porta de alumínio e corta o seu corpo por não querer estar sozinha. Bizarrias do corpo... No entanto, quanto mais bizarra se torna esta mulher (por mais intensamente cruzar humano e desumano), mais se aproxima Christian da decisão de permanecer neste planeta de encarnação de memórias, menos diferença faz o facto de real e simulacro serem incompatíveis, menos sentido faz ciência e amor serem contrários. A irrelevância desta distinção decorrerá da possibilidade de tomar um pelo outro e vice-versa, de tomar um de acordo com os critérios do outro, de compactuar com a suspensão da descrença.

A certa altura perto do final, Christian está no corredor da estação com a mulher, mais uma vez, morta ao seu lado. Ao fundo do plano, alguém sai a correr de uma das salas e desaparece. Em pouco tempo a mesma figura reaparece no lado oposto do corredor e entra noutra sala. Só aqui se torna explicito que a estação é circular. Christian levanta-se e fica de costas. A imagem difunde-se, funde-se na seguinte e Christian passa a ver-se de frente. Neste efeito de ilusão, quem assinou o pacto perde a capacidade de afirmar peremptoriamente se foi Christian que rodou ou se fomos nós que demos a volta ao corredor.

Sem comentários:

Enviar um comentário