domingo

a história da página que quis ser arrancada para andar sempre comigo

III
Evidentemente que eu estou no decorrer de uma viagem de comboio. A palavra forte não é viagem de comboio, mas no decorrer de. O sol ilumina metade do livro, cortando a página em sombra e luz. Com a trepidação, a minha mão transportada pelo comboio treme, e a pequena garrafa com água para beber tomba.
Do ponto de vista dos meus olhos, esta é uma história não humana, entre coisas, uma menos-valia que decidi contar, porque pô-la a nu equivale a libertá-la da sua morte inglória e banal.
Não verteu a água, mas mudou de posição dentro da garrafa. Oscilou, estendeu-se à superfície tendo por horizonte apenas os meus olhos. Esse fenómeno simples foi visto por um outro que o escreveu.
O universo multiplica-se com a descrição minuciosa e atenta da viagem.

segunda-feira

Canino (Yorgos Lanthimos)

Uma história crudelíssima sem um pingo de cozedura misericordiosa. Tudo tão cru, tão físico, como se todo o filme se passasse sob uma luz demasiado branca. Qualquer coisa fica a faltar para amparar da violência dos choques, qualquer subtileza que antecipe a salvação daquelas crianças - cujas idades não se consegue adivinhar -, qualquer subtiliza que nos resguarde de assistir a tanta opressão, qualquer mistério de natureza psicológica ou simbólica que nos liberte do poder das imagens. Mas a linguagem do filme não dá tréguas, não sendo uma linguagem exclusivamente cinematográfica, ela é linguagem no seu mais subversivo estádio da mentira e da dominação. Têm sido referidos, na crítica, os paralelismos com a mecânica dos discursos propagandísticos, ditatoriais. E os seus efeitos exercem-se (afinal talvez Canino seja um filme mais perverso do que poderia parecer...) mais sobre o público do que sobre as crianças. Só ao público e aos pais das crianças - que as isolam num mundo fabricado e estéril - é dado a ver como a capacidade transgressiva, exclusivo humano, é decepada pela mentira, quando esta se desenvolve em boas condições de sistematização e manutenção.
É certo que uma das filhas se escapa da casa, mas que poderá restar a uma criatura infantilizada e incestuosa por sua própria conta sem sequer conhecer o comum sentido das palavras para a comunidade? Não se sabe, porque com o destilar de mais uma cena abrupta o filme termina. E é esta a constante sensação: abruptidão.

Já a propósito de um filme de Raquel Freire, Veneno Cura, havia recordado o relevo das propriedade aristotélicas da compaixão e do medo em qualquer encenação. E talvez esta seja uma forma de entender esse sensação abrupta: ambos os filmes se contorcem em dinâmicas tão próprias e fechadas, que o espectador está condenado a ficar do lado de fora, do lado em que não chega aos personagens para lhes tomar a pele e com eles partilhar dores. Ambos os filmes se sentem tão irremediavelmente atraídos pela crueldade humana, que sentimento algum de redenção pode trespassar das luzes do ecrã.
Ou estaremos apenas demasiado apegados à noção de equilíbrio?

sábado

Vertigem

"quando glenn gould acelera a execução de uma peça, não age apenas por virtuosismo, transforma os pontos musicais em linhas, faz proliferar o conjunto" Rizoma, GD e FG

há uma mulher em Vertigo, há uma mulher em Solaris, há uma mulher em Vertigo, há uma mulher em Solaris, agora mais depressa: há uma mukher em Vertifoo , há uma muher em Solaris, há uma mukher em Vertgo , há uma mulher em solatris, há ukuma em Vdrtigo, á uma lueker em solarii, .....

há uma multiplicidade de mulheres que se distende num sentido de repetição muito particular. em Solaris, a mulher sudece-se em episódios de ressurreição - sem que a memória lhe garanta ser a mesma -, em Vertigo, a mulher vive duas vezes nas mesmas circunstâncias e morre duas vezes nas mesmas circunstâncias, mas nunca é a mesma. (sendo que Vertigo subtiliza a repetição por meio da alternância entre o olho e o ouvido)

a velocidade faz convergir as questões da realidade e da ilusão para um conflito de identidade. no conflito da identidade aos olhos de quem ama. e quem ama ama o quê?
a velocidade faz os conjuntos? e os conjuntos fazem também rizoma com o desejo, "porque é sempre em rizoma que o desejo se move e produz."

quinta-feira

"happiness is an idea that is obsolete", somewhere in Solaris

arrumava-se assim: tudo é ilusão, tudo é ficção, venha o Coleridge e pronuncie pausada e silabadamente: suspension of disbelief!


acabava-se tudo... não fosse haver um problema que não se deixa dissolver: Solaris acaba sobre a casa do pai, numa ilha, a meio do oceano.
Em casa do pai de Christian, no início do filme de Tarkovky, estão quatro pessoas a assistir a um filme. No filme estão reunidas eminências científicas para avaliar o depoimento de um viajante regressado de Solaris - o planeta inteligente sobre o qual pouco se conhece. Eminências e depoente estão em contacto por uma espécie de sistema de videoconferência; o depoimento do viajante é suportado por imagens por ele recolhidas no planeta. Burton, o viajante, está presente na sala de estar, assistindo ao filme, e no filme; em ambos os filmes, Burton é interrogado, e em ambos os filmes é tomado por um alucinado que não pode ter visto o que conta.
Este desdobrar de pessoas em frente ao ecrã, de assistências, remeterá para a circunstância de assistir a um filme. Este desdobrar da presença de Burton, contactável em todos os planos, remeterá para a quebra da fronteira entre dentro e fora do ecrã, entre ficção e realidade.
Depois disto, Tarovsky envia Christian a Solaris para executar a missão que a todos parece a mais sensata: destruir a estação instalada no planeta, visto que pouco sumo científico está a render. Chegado ao seu destino, torna-se rapidamente uma evidência para Christian que o depoimento alucinado de Burton tem algum fundamento. Solaris tem a capacidade de materializar momentos da memória dos que lá estão; Solaris interage de forma visível, sensível e emocional. E surge assim a falecida mulher de Christian: uma criatura afável e plena de dedicação, mas que ele se vê obrigado a negar, por não ser real, tão humanamente irreal que tem a capacidade de se auto-regenerar, de ressuscitar, de não saber quem é. Uma figura humana que usa um vestido do qual só pode sair cortando-o com uma tesoura... que adquire contornos monstruosos ao querer desesperadamente sair duma sala, destrói uma porta de alumínio e corta o seu corpo por não querer estar sozinha. Bizarrias do corpo... No entanto, quanto mais bizarra se torna esta mulher (por mais intensamente cruzar humano e desumano), mais se aproxima Christian da decisão de permanecer neste planeta de encarnação de memórias, menos diferença faz o facto de real e simulacro serem incompatíveis, menos sentido faz ciência e amor serem contrários. A irrelevância desta distinção decorrerá da possibilidade de tomar um pelo outro e vice-versa, de tomar um de acordo com os critérios do outro, de compactuar com a suspensão da descrença.

A certa altura perto do final, Christian está no corredor da estação com a mulher, mais uma vez, morta ao seu lado. Ao fundo do plano, alguém sai a correr de uma das salas e desaparece. Em pouco tempo a mesma figura reaparece no lado oposto do corredor e entra noutra sala. Só aqui se torna explicito que a estação é circular. Christian levanta-se e fica de costas. A imagem difunde-se, funde-se na seguinte e Christian passa a ver-se de frente. Neste efeito de ilusão, quem assinou o pacto perde a capacidade de afirmar peremptoriamente se foi Christian que rodou ou se fomos nós que demos a volta ao corredor.