segunda-feira

Canino (Yorgos Lanthimos)

Uma história crudelíssima sem um pingo de cozedura misericordiosa. Tudo tão cru, tão físico, como se todo o filme se passasse sob uma luz demasiado branca. Qualquer coisa fica a faltar para amparar da violência dos choques, qualquer subtileza que antecipe a salvação daquelas crianças - cujas idades não se consegue adivinhar -, qualquer subtiliza que nos resguarde de assistir a tanta opressão, qualquer mistério de natureza psicológica ou simbólica que nos liberte do poder das imagens. Mas a linguagem do filme não dá tréguas, não sendo uma linguagem exclusivamente cinematográfica, ela é linguagem no seu mais subversivo estádio da mentira e da dominação. Têm sido referidos, na crítica, os paralelismos com a mecânica dos discursos propagandísticos, ditatoriais. E os seus efeitos exercem-se (afinal talvez Canino seja um filme mais perverso do que poderia parecer...) mais sobre o público do que sobre as crianças. Só ao público e aos pais das crianças - que as isolam num mundo fabricado e estéril - é dado a ver como a capacidade transgressiva, exclusivo humano, é decepada pela mentira, quando esta se desenvolve em boas condições de sistematização e manutenção.
É certo que uma das filhas se escapa da casa, mas que poderá restar a uma criatura infantilizada e incestuosa por sua própria conta sem sequer conhecer o comum sentido das palavras para a comunidade? Não se sabe, porque com o destilar de mais uma cena abrupta o filme termina. E é esta a constante sensação: abruptidão.

Já a propósito de um filme de Raquel Freire, Veneno Cura, havia recordado o relevo das propriedade aristotélicas da compaixão e do medo em qualquer encenação. E talvez esta seja uma forma de entender esse sensação abrupta: ambos os filmes se contorcem em dinâmicas tão próprias e fechadas, que o espectador está condenado a ficar do lado de fora, do lado em que não chega aos personagens para lhes tomar a pele e com eles partilhar dores. Ambos os filmes se sentem tão irremediavelmente atraídos pela crueldade humana, que sentimento algum de redenção pode trespassar das luzes do ecrã.
Ou estaremos apenas demasiado apegados à noção de equilíbrio?

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