segunda-feira

Contributo de A Mulher sem Cabeça para a noção de romance


Estava planeado decripticar A Máquina do Amor Sagrado e Profano na quinta-feira, mas atravessou-se-lhe A Mulher sem Cabeça no caminho e tornou-se urgente falar do romance.

"A realidade é um acto de fé de todos nós. Um grande consenso e um acto de fé..." Em entrevista ao Ípsilon de sexta dia 3, a propósito do seu último filme, Lucrecia Martel sintetiza o romance de Iris Murdoch e expõe em poucas palavras a mecânica do género.

A Máquina do Amor Sagrado e Profano acompanha (como se fossem coisas independentes) um psicoterapeuta com duas famílias, a legítima em ambiente tranquilo e a bastarda em decadência. Despoletada por factos que lhe são alheios, Blaise confronta-se com a necessidade de revelar à mulher com quem casou que nos últimos cerca de dez anos manteve uma relação paralela com outra mulher, na qual se gerou um filho.

Uma perturbação que, de entre todos os seus males, tem como o maior a necessidade de ser contado, isto é: não é sagrado. A revelação é a profanação do território sacralizado pelo tácito e a perturbação da ordem não tem como ser expressada pelos rituais; a revelação, a perturbação, obriga o círculo fechado, pré-concebido e institucionalizado a receber estranhos (pessoas, coisas ou acontecimentos). A mulher e o filho de Blaise não podem continuar as suas vidas fingindo que a amante e o outro filho de Blaise foram apenas alguém que lhes bateu à porta por engano. Já Veronica, a mulher sem cabeça, decide passar novamente por cima do corpo (humano ou animal?) que atropelou agora para o esquecer.

Crise é o momento ideal para o romance. Porque se procura voltar a uma inocência auto-reflectiva, porque o profano interroga o sagrado e o desabriga do estatuto de tabu, porque tem sempre que ver com a dessacralização da fé. "Quando se é criança sentem-se as coisas
sem se dizer." Continua Martel na entrevista, pois eu proponho o contrário: quando se é adulto sentem-se as coisas sem se dizer, e quando se têm mesmo de dizer essas coisas, inicia-se um regresso purificador a um estado essencial. Importa pouco ao romance onde leva esse regresso, ou se esse regresso é efectivamente levado a cabo. Importa a fractura que se torna acto não religioso mas espiritual. O personagem que se desdobra, o sujeito que se afasta da máscara e deixa espaço ao narrador para o escrutínio.

"Se a anedota é muito forte, se a construção da narrativa é impositiva, não há renovação da percepção." É neste momento lúcido, de consciência, que o cinema, máquina artística como a literatura, romance, conto ou poema, se transforma em revelação.

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