quinta-feira

A Náusea e o caminho para o nouveau roman

Já me tinha ocorrido que do romance não se pudesse fazer um retrato exacto. Ocorre-me agora a hipótese de tal coisa nem sequer existir. O que resta deste termo quando se tem nas mãos um romance tão diferente do anterior, como é o caso de A Náusea (Jean Paul Sartre, 1938)?

“Quando se está sozinho deixa de se saber o que seja narrar: a verosimilhança desaparece ao mesmo tempo que os amigos.” Roquentin é um protagonista solitário com um diário. Está num espaço privilegiado que lhe permite evadir-se ao confronto com os outros - que é onde muitas vezes se situa a verdadeira origem da tensão do romance "tradicional". Aqui o confronto é com o exterior material, é com as coisas estáticas que não emitem respostas porque não têm nada a dizer, porque simplesmente não dizem nada. A Náusea reflecte esse silêncio das coisas, obrigando Roquentin a formular o postulado existencialista de que tudo o gira em torno dessas coisas são apenas vozes que ele próprio lhes acrescenta artificialmente - como se fossem dobragens dessincronizadas. Roquentin olha para si, independente do exterior, por ser o único corpo vivo acessível, a única matéria orgânica que pode tentar compreender. O outro é sempre um estranho, a quem se tenta fazer chegar uma extensão dessa possibilidade, que inevitavelmente falha.
“Não tenho o costume de contar a mim próprio o que me vai sucedendo” agudiza a percepção de uma dualidade interior, manifesta na auto-consciência do indivíduo que se desdobra em sujeito de si enquanto objecto e simultaneamente em objecto de si enquanto sujeito. Constrói-se, ou percepciona-se, uma duplicidade que dispensa a presença de outros para a existência do indivíduo. E como sujeito e objecto se encontram na mesma plataforma existencial, a sua comunicação não necessita de um veículo material para transportar as significações – esta particularidade transfigura por completo o esquema comunicacional, ou torna-o dispensável. Neste indivíduo as ideias e os conceitos não necessitam de ser categorizados por palavras, não precisam de encontrar correspondências verbalizadas, podem permanecer em estado, tanto quanto possível, puro, no seu estado ideal. Assim, correm o risco de, como afirma Roquentin, de se manterem em estados enevoados, de pouca clareza.
“Não tenho o costume de contar a mim próprio o que me vai sucedendo; por isso não recordo bem a sucessão dos acontecimentos, não distingo o que é importante.”
Que papel desempenham os outros no estabelecimento da escala de importância de acontecimentos pessoais? Apenas na medida em que se pretenda que essa escala seja regida por valores universais, se procure os valores absolutos em que um acontecimento possa corresponder univocamente a determinado ponto da escala. A novidade para A Náusea já não é não existir uma escala universal de valores, mas sim não existirem valores.

“Decididamente o sentimento de aventura não vem dos acontecimentos.” Ele decorre da noção de irreversibilidade do tempo e do encadeamento dos acontecimentos: o acontecimento que nunca se poderá repetir é potenciado na sua unicidade pelos acontecimentos que se lhe seguem, assim aquando da narração do episódio já se pode acrescentar ao primeiro momento presságios do que serão os seguintes, já se poderá estabelecer relações simbólicas entre eles e transformá-los numa aventura. É um jogo de vaivém temporal que legitima a revalorização dos acontecimentos.
No romance tradicional este mecanismo torna-se evidente, por exemplo, quando determinado personagem, que sempre agira de acordo com um carácter forte, no final do romance se vê em posição de fraqueza, nesse momento todo o passado do personagem é reavaliado e os acontecimentos encerram o prenúncio até então obscuro.

A uma segunda-feira Roquentin escreve: “Não tenho necessidade de fazer frases. Escrevo para aclarar certas circunstâncias. Desconfiar da literatura! É preciso escrever ao correr da pena, sem procurar as palavras.”
Estavam lançadas as bases do nouveau roman, um romance livre da obrigação da lógica interna, cujos elementos não têm de concorrer para um sistema global de significações, nem dele depender?

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