quinta-feira

Porque se diz que Borges e Tchékhov são dois paradigmas do conto


Harold Bloom escreveu talvez em Como Ler e Porquê (2000) que Tchékhov (1860-1904) e Borges (1899-1986) são as tendências actuais dos contos. A desactualização a que é susceptível uma asserção desta natureza não reduz o valor destes contos a apontamentos de uma história literária. Têm ambos lugar garantido na categoria dos clássicos;assim, resta compreender o valor que lhe é atribuído enquanto tal, o de paradigma. Adia-se a problemática que diz respeito aos termos paradigma, clássico e cânone, tão caros a Bloom, para outra ocasião.

O filho e o amante de Olga Ivanóvna têm, sob promessa sigilosa do amante, uma conversa que desvenda, em primeiro lugar, que filho e pai se encontram às escondidas da mãe e, em segundo lugar, que o pai considera mãe e filhos uns desgraçados por culpa do amante. Olga entra em cena e o amante confronta-a com as acusações que lhe são dirigidas pelo marido. E o filho não esquecerá o momento em que "deparara pela primeira vez na vida, cara a cara, com a mentira; dantes não sabia que neste mundo, além das pêras doces, dos pastéis e dos relógios caros, existem muito mais coisas que nem nome têm na língua infantil."
(Tchékhov, Insignificâncias da Vida, Contos, vol. I, Relógio D'Água)

"Então Bioy Casares recordou que um dos heresiarcas de Uqbar havia declarado que os espelhos e a cópula eram abomináveis, porque multiplicam o número dos homens. Perguntei-lhe a origem desta memorável sentença e respondeu-me que The Anglo-American Cyclopaedia a registava no seu artigo sobre Uqbar." Uqbar começa por ser referido num único exemplar do volume Tor-Ups da enciclopédia. Num crescente labirinto de referências Uqbar vai ganhando existência ora como uma "região do Iraque ou da Ásia Menor", ora como comunidade imaginária, ora como um planeta desconhecido, até que o narrador se encontra com o livro que fixa a história total de Uqbar.
(Jorge Luis Borges, Tlon, Uqbar, Orbis Tertius, Ficções, 1944)

Este conto é dos que mais explicitamente afirma a opção tomada por Borges: a ficção - não na literatura, mas por oposição à realidade. A ficção de Borges é de mundos paralelos, nada fantásticos, totalmente lógicos. Cada conto de Borges rege-se por um princípio lógico exclusivo que só pode ser entendido no próprio conto, isto é, o mundo real é o dos livros e as pistas que eles deixam levam a mundos ficcionados, em jogos de espelhos cujas imagens se confundem até perder de vista os limites da realidade e da ficção. Tlon, Uqbar, Orbis Tertius é a terceira via, labiríntica como a literatura de Borges, ordenada como a literatura, de Borges e humana, como o âmago da literatura de Borges.

Tchékhov opta pela realidade, ajusta os limites da sua ficção aos limites da realidade que conhece, em contos plásticos. São recortes muito precisos de momentos extraídos de vidas dadas a conhecer na sua totalidade através de uma fórmula radical, concisa e funcional - que nunca teria lugar num conto borgesiano - "como de costume". O conto de Tchékhov concentra-se na singularidade indelével, no particular perturbante no seio do costume. O conto de Tchékhov pode igualmente construir-se sobre a repetição da anomalia como processo de regularização, jogando sempre com os valores de rotina e de ruptura.

Assim, os contos de um são expansão (pelo espaço incartografável da ficção) e os do outro de retracção (provocada pelo tempo condicionado da realidade); Borges escreve propostas de uma ordem paralela e Tchékhov escreve as perturbações da ordem. Cada um à sua maneira paradigmática estabelece ligações entre os eixos singular-universal que presidem à literatura em geral e ao conto em particular. Quanto ao romance, para ser um conto falta-lhe este princípio de unidade. Ele dispersa-se nas múltiplas possibilidades, sem ter de prestar fidelidade a nenhuma.

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