domingo

O Segredo de Joe Gould, Joseph Mitchell

"Andei a pensar neste romance durante mais de um ano. Sempre que acontecia não ter nada que fazer, começava automaticamente a escrevê-lo na minha cabeça. Às vezes, durante uma viagem de metro, escrevia três ou quatro capítulos. Quase todos os dias, afastava umas quantas personagens e inventava outras tantas novas. Mas a verdade é que nunca escrevi realmente uma única palavra do livro. O tempo passava, e eu via-me tomado por outros assuntos. Ainda assim, durante anos continuei a devanear sobre ele, e nesses devaneios via-me como tendo acabado de escrever o livro, como tendo sido publicado e era capaz de o ver. Conseguia ver a capa, que era verde com letras douradas. Estas recordações deixaram-me dominado por um embaraço quase insuportável, e cada vez mais disposto a compreender Gould."

Esta poderia ser uma preferência compreensível do ideal ao material. Poderia ser a preguiça da mão e a indisciplina do pensamento, e vice-versa, a oferecerem resistência ao texto.
Mas não estará em jogo também uma forma de lidar com a morte, uma fuga à morte como modalidade inescapável de finitude, uma fuga à morte como corolário da finitude de todas as coisas.

Escrever é o registar do pensamento que não se quer perder, ou o registar do próprio acto do pensamento. A pulsão que preside ao acto da escrita é necessariamente a de escapar a essa outra modalidade da finitude (que é o esquecimento). O registo do pensamento ou do acto do pensamento numa obra acabada, e por isto entenda-se pronta para ser publicada, é um modo de escapar ao esquecimento, mas não o é um relação à finitude e à morte. Assim, a obra inacabada é o estado que assume o desejo de não cair no esquecimento (esse sim potencialmente infinito em si mesmo), mas simultaneamente renuncia a compactuar na aceitação da morte e da finitude. O estado de inconclusão que se afirma impreparado para morrer.

Resta saber se o medo da finitude pertence, originalmente, ao próprio texto ou a quem o escreve.
Que é da natureza humana, não é questionável - asseveram-no a classificação patológica da pulsão de morte e o instinto de procriar (e o prefixo pro - convida aqui o amor - como forma de cumplicidade para enfrentar a morte).

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